domingo, 27 de julho de 2008

HAMLET


Ontem fui no teatro da FAAP aqui em SP ver a excelente montagem de “Hamlet”, de William Shakespeare, pelo dramaturgo Aderbal Freire Filho com Wagner Moura no papel título.

Bom, a tragédia é aquela famosa de Shakespeare; transcorre no castelo de Elsinore, na Dinamarca, onde podemos observar este príncipe e seus conflitos, angustias, ambigüidades; o surgimento da racionalidade e da loucura, da culpa, do ódio e dos sentimentos inconscientes que anteciparam em muito a psicologia freudiana estão todos lá, e, como já disse o critico literário Harold Bloom, em Shakespeare ocorre, em pleno século XVII, "a invenção do humano" e todos seus conflitos e angustias. Aderbal, conseguiu transpor esta famosa peça para os dias atuais, um texto que só auxilia por sua atemporalidade; sempre achei Shakespeare em suas tragédias de uma qualidade arquetípica e avassaladoramente completo , posto que ele fala de sentimentos comuns a todo e qualquer ser humano tais como traição, amor, ódio, ganância, etc.

A montagem é excepcional, a coxia é aberta e trazida às laterais do cenário central , portanto os atores que não estão “em cena” ficam alí, à direita ou esquerda do palco, os vemos beber água, trocar de roupas. As máscaras são retiradas e o “mise em scéne” todo passa a incluir os bastidores e vemos alí o ator desnudado que ao projetar-se para a frente transmuta-se se em personagem. O humano transformado em demasiado humano....Percebemos , de repente, no canto um príncipe Hamlet que é o ator Wagner Moura enxugando a transpiração, ajustando a blusa; portanto tudo é humanizado e nada endeusado ou fetichizado. A encenação é toda em tom coloquial. Tornam-se todos,eu novamente recorrendo à Nietzsche, demasiados humanos . Há também um dado que apreciei muito e me recordou o cineasta Peter Greenaway e suas montagens teatrais e/ ou cinematográficas em que este faz uso de várias linguagens: o teatro que interpenetra-se com o cinema, com o livro,a fotografia- a interdisciplinaridade das linguagens. Há nesta montagem uma câmera de filmagem P/B que vai e vem da mão dos atores em certos momentos pungentes da peça,quando estes a utilizam para filmar seus companheiros, simbolizando um close nas ações e emoções, ou seja no desmascaramento do inconsciente velado; a dor, a traição desnudam-se nesta câmera que em closes nas feições dos atores dialoga ao mesmo tempo com suas encenações; suas ações são substantivadas, catapultadas, engrandecem-se. Esta câmera é o olho que tudo registra e que nada perde e serve certa hora, a pedido do príncipe Hamlet, como prova documental das feições do rei Cláudio quando este manifesta expressivamente vendo a peça encenada pelos atores e caí em falácia pela traições do trono da Dinamarca. Interessante a metalinguagem ao se utilizar o teatro, para revelar a verdade,fazendo isto através de uma peça, ou ainda a metalinguagem de Aderbal ao usar o cinematográfico para potencializar a dramaturgia. A câmera de filmagem PB como lente de aumento das sensações dos atores.

Os tênues limites entre a realidade e a ficção na revelação dos também tênues limites entre o que é o SER e o não SER deste príncipe que utiliza-se de um falso disfarce de louco para revelar a loucura dos outros; também aqui o “confusionismo” entre loucura e sanidade faz-se claro.E explorar seus limites livre de preconceitos é de uma grandiosidade.

Alguns atores têm excelente desempenho, Gillray Coutinho como Polônio, pai de Ofélia, revela um homem inquieto tomado por tiques nervosos e tem uma expressão corporal excelente o que auxilia ainda mais na composição deste personagem retórico e hilário. São alguns sutis momentos cômicos na obra de Shakespeare que manifestam-se.

Ofélia, vivida por Georgiana Góes esta na medida certa, a jovem virgem apaixonada pelo príncipe que enlouquece; vale atentar para seu vestido branco cheio de babados que na verdade são feitos de camisas. Sua atuação é sutil delicada e precisa na composição da frágil personagem .

Wagner Moura esta maravilhoso. Assustei-me com sua precisa empostação de voz, em que seu sotaque baiano perde-se e revela um trabalho de colocação de voz e expressão corporal bárbaros. O ator faz uma verdadeira maratona(ele deve perder uns bons kilos por encenação...), no decorrer da peça: pula, gesticula do alto à baixo de seus limites, sua atuação é 360 graus, revela, pois a grandeza deste homem barroco que ia da luz à escuridão, da racionalidade ao instinto, do céu à terra, desnudando, portanto todos os podres da Dinamarca, desde seus fétidos fedores na guerra do poder em que tudo é valido até as singelas delicadezas de um homem que busca a verdade e tantas outras coisas para além daquelas simples do que sonha nossa vã filosofia.

O figurino, de Marcelo Pies, é calcado em roupas da Osklen, exibe toda uma homogeneidade em tons pastéis e o fato de Hamlet e seus contemporâneos usarem moletons e tênis apenas engrandece a atemporalidade e gransiosodade da peça e a percepção de Aderbal na montagem atual. Os casacos são maravilhosos, assim como os vestidos de um vermelho sangue da rainha Gertrudes ou os brancos picotados , manchados e desbotados de Ofélia.

Embasbaquei-me. E o resto é silencio....





Abaixo o serviço da peça:

HAMLET

De William Shakespeare

Tradução de Aderbal Freire-Filho com Barbara Harrington e Wagner Moura

Direção de Aderbal Freire-Filho

Com Wagner Moura, Tonico Pereira, Carla Ribas, Georgiana Góes, Caio Junqueira, Cláudio Mendes, Fábio Lago, Felipe Koury, Gillray Coutinho e Marcelo Flores

Cenário: Fernando Mello da Costa e Rostand Albuquerque

Iluminação: Maneco Quinderé

Figurinos: Marcelo Pies

Trilha Sonora: Rodrigo Amarante

Produção Executiva: Nil Caniné
Direção de Produção: Sérgio Martins
Realização: Sérgio Martins & Wagner Moura

____________

Até 28 de setembro

Teatro Faap

Duração: 170 minutos (com intervalo de 15 minutos)

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Encontro com o Tempo Perdido


Acabei de ler, por estes dias, o primeiro volume, de um total de sete, da clássica obra de Marcel Proust, "Em Busca do Tempo Perdido", ( Em busca de Swan-volume 1- tradução de Mario Quintana- editora Globo); coloquei-me este delicioso desafio , de ler esta obra completa composta de quase 4.000 páginas nesta altura de meus balzaquianos anos. E, recomendo, é sublime sua escrita, uma constante oscilação entre o sonho, o delírio e interantíssimas relações entre o tempo do acontecer das coisas e o de seu recordar; uma apologia à descrição delicada e rica das maneiras, das pessoas, das paisagens. Proust nos diz que cada ser humano ocupa um papel mínimo no espaço e no tempo mas, mesmo assim, estamos no topo de um prédio de memórias pessoais e coletivas que nos torna gigantes; portanto toda e qualquer experiência de vida torna-se, à sua vista, riquíssima e merecedora de ser narrada. Como ele mesmo diz " Os lugares que conhecemos não pertencem tampouco ao mundo do espaço, onde os situamos para maior facilidade.... a recordação de certa imagem não é senão a saudade de certo instante; e as casas, os caminhos, a avenidas são fugitivos, infelizmente, como os anos."
Para mim que trabalho com artes plásticas, achei valiosissima esta colocação sobre o tempo e espaço, estes são apenas abstrações, parâmentos criados pela sociedade, mas, precisamente as coisas apenas acontecem no tempo e espaço de nossas mentes e apenas em nossas memórias vivem, vive-las no real é especializar estas , tornando-as dimensionáveis e palpáveis. Proust como um completo escritor que foi compartilha conosco suas riquíssimas memórias pessoais e coletivas

Bom, agora vou comprar o segundo volume, pois a viagem em busca do tempo perdido não pode parar.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

O Escafandro e a Borboleta


A vida vista apenas pelo olho esquerdo.

É assim que começa o filme “O escafandro e a borboleta’ do excelente artista plástico e diretor de cinema Julian Schnabel (fez outros dois ótimos filmes “Before the night falls” e “Basquiat”).

Um filme baseado em fatos reais, na vida do editor da revista Elle Jean-Dominique Bauby, na época com então 40 e poucos anos ( a história se passa em 1995), pai de familia, que sofre um derrame cerebral e apenas através de seu olho esquerdo consegue comunicar-se com o mundo exterior. Os primeiros 20 minutos iniciais do filme são todos filmados do ponto de vista do protagonista, a câmera encontra-se literalmente em seu olho, percebemos e somos seu olho, e passamos a nos identificar com esta personagem que passa a comunicar-se com o mundo através de piscadas . Seu ponto de fuga é este, restrito.Vemos através de seu embaçamento, de seus piscares,(lembrei-me agora do filme “Quero ser John Malcovitch”, em que uma personagem entra dentro da cabeça do citado ator e passa a ver de dentro de sua cabeça também...), e como o próprio personagem diz agora o que lhe resta do mundo são sua memória e sua imaginação, ou, do contrário, entregar-se à morte.

Seu olho é sua pena, ele soletra, letra por letra, demorada e pacientemente a sua vida, e esta é a matéria de seu livro autobiográfico,que originou o filme. O filme é, portanto,regido por esta metalinguagem.

O interessante deste filme é que ele nos coloca no tempo contemplativo deste homem imobilizado, o tempo da espera, do devir, onde todo e qualquer esforço é dificílimo, e cada letra tão cheia de pensamentos completos e imagens risíveis.

Bauby, sonha, imagina, mas na vida real , ficou quase um ano vivendo nesta condição, ditando sua vida e memórias.

Muito louco pensar esta vida no tempo da simultaneidade, do celular, da comunicação em massa, da internet. Mundo este em que o silêncio não é possível, a imobilidade muito menos e talvez até mesmo a imaginação fértil.

O filme me fez pensar no poder da imaginação. Hoje imaginamos cada vez menos, a mídia e o mundo do consumo nos ditam o que e de que forma fazer isto ou aquilo. Não nos debruçamos mais para escrever, não debatemos mais nossos sonhos, não desenhamos ou criamos mais. Para onde foi nossa mente imaginativa e criativa??

Onde mora o poder do sonho e da fantasia que tudo pode?

As máquinas contemporâneas nos tornaram seus escravos e nossas mentes criativas embalsamaram-se; não vejo hoje mais as pessoas criando,debruçando-se sobre o delírio e serem tomadas por surtos criativos, elas apenas consomem e sentem-se vazias. Visto que podem fazer tudo isto mexendo todos os órgãos de seus corpos, tão empobrecidos, utilizados apenas para o mercado. Bauby com apenas um órgão expressivo cria mundos infinitos e reergue-se como ser humano.

O filme é todo tátil, cheio de texturas riquíssimas, onde simples imagens de cabelo ao vento podem tornar-se tufões da natureza. 0 horizonte do ponto de vista de Bauby é outro, suas paisagens são outras. Tudo passa a ser relativizados e potencializado ou diminuído a partir da nova condição deste personagem. Ele não se deixa afundar pelo peso do escafandro de ferro mas liberta-se nas asas da borboleta. Sente-se como um escafandrista preso e incomunicável no fundo do mar, mas quando imagina, sua mente corre solta tal como uma borboleta desencasulada. O filme oscila entre o vai e vem de seus flaskbacks e os delírios imaginativos de seu incansável cérebro.

Através de suas lembranças e delírios,o peso de seu corpo ganha asas e ele pode voar.

Bom ver filmes inteligentes e não politicamente corretos em que ficamos sentido pena do protagonista enclausurado em sua deficiência. Palmas para Schnabel.

Ou melhor, um bater de asas, de borboleta, claro!

terça-feira, 8 de julho de 2008

Objeto transitório para uso humano






Fui hoje ver a relacional exposição da artista iugoslava Marina Abramovic. Sai de lá estarrecida e completamente deslocada. Mas creio que a boa arte faz isto: nos desloca e nos joga noutro universo: trata-se de uma mostra totalmente relacional em que somos obrigados a participar, vivenciar todas as obras ali vivas. Marina, nascida em Belgrado em1946, desenvolveu ao longo destes anos obras performáticas (muitas delas em parceria com seu namorado nos anos 80, Ulay; cúmplice em muitas de suas obras que articulam no limite do corpo); o casal troca numa destas tapas na cara um do outro , noutra "Expanding in space", o corpo pela sua expansão no espaço desloca e move paredes; noutra ainda, facas dançam em torno dos dedos de suas mãos-, um trabalho que articula nos limites tão tênues da vida e da morte, da arte e a aberração; em muitas delas a artista saiu carregada por médicos ou foi retirada por uma ambulância no limite da exaustão. Em 2002 numa Galeria em NY permaneceu 12 dias num período de 8 horas diárias, nua e sem comida ou água; defecando e vivendo 'normalmente' dentro desta. Outra vez, 16 horas imóvel amarrada pelo cabelo ao seu namorado . Marina dialoga no limite do corpo, na duração real da experiência, ela torna-se a sua própria obra e o devir de seu trabalho dá-se , realiza-se na vivência da própria artista no viver e exaurir-se neste. A matéria moldável de seus trabalho é seu próprio corpo, sem piedade nenhuma, sodomizado, cortado, batido, etc. O limite do quanto este suporta e dos níveis daquilo entre o fazer e não fazer nada; a mobilidade e imobilidade, o contemplar e o agir.Em todos os trabalhos presentes na mostra atual nós, o público interagimos com peças compostas de ferro,alumínio, imãs, luz neon, cobre oxidado, camomila, pedras brutas , tais como ametistas, quartzo rosa e lápis-lazúli. Materiais que armazenam e trocam energia. As obras nos despertam sensações sutis através de movimentos de energia; ativam chacras, nos estimulam por meio de cheiros e luzes- trata-se de uma mostra relacional e sinestésica, para todos os nossos sentidos .
Explorando os limites físicos e mentais de seu ser, Marina, ao longo de sua carreira, suportou a dor, a exaustão e o perigo, na busca da transformação emocional e espiritual, com performances, som, fotografia, vídeo, escultura. Seu trabalho figura em numerosas coleções públicas e privadas, além de contar com participações nas mais renomadas mostras de arte internacionais.

Temos de viver estas em 10 minutos, noutras vezes, por uma ou até 3 horas. Devemos interromper nossa vida cotidiana e nos dedicar a entrar no tempo do fruir de suas obras relacionais. Claro que hoje não pude interromper meu dia habitual de trabalho e passar o dia na galeria, mas pretendo fazer isto e mergulhar na vivencia de cada uma nalgumas idas à Galeria.
Vale lembrar que o que Marina nos pede não é fácil, e que esta tornou-se ao longo do tempo Budista. Difícil a gente conseguir se desvincular do nosso tempo e rotinas e nos despreendermos da vida corriqueira para entrar no tempo de sua obra. As peças são tão convidativas, algumas delas até mesmo lúdicas. A exposição está em cartaz até dia 2 de Agosto, aqui em São Paulo na Galeria Brito Cimino, na Vila Olímpia, maiores informações no link da galeria : http://www.britocimino.com.br/

Aqui algumas performances de Marina que podemos ver no Youtube:

http://www.youtube.com/watch?v=pno1gCrbeVk

http://www.youtube.com/watch?v=PD41IRukna8

http://www.youtube.com/watch?v=h9-HVwEbdCo

http://www.youtube.com/watch?v=mUz5rnxQmfI&feature=related

http://www.youtube.com/watch?v=sjdLUmFwiFg&feature=related

Aproveitem a dica e lembrem-se "Art must be beautiful......"

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Eros é a vida


Já disse Marcel Duchamp com sua obra "RRose Sélavy". Ao travestir-se de uma personagem feminina assim intitulada, Duchamp resumiu a essência de tudo. Foi o primeiro na história da arte a assumir um alter- ego feminino.
No amor e por ele tudo se justifica.