quinta-feira, 22 de outubro de 2009

"A Linha e a Agulha" por Machado de Assis

(Publicado originalmente em Gazeta de Notícias, 1885)

Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:

— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo?

— Deixe-me, senhora.

— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.

— Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.

— Mas você é orgulhosa.

— Decerto que sou.

— Mas por quê?

— É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?

— Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu?

— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...

— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando...

— Também os batedores vão adiante do imperador.

— Você imperador?

— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...

Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:

— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...

A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.

Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe:

— Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.

Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha: — Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.

Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça: — Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!

FIM

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

...E o Cinema matou Hitler


Sinto informar aos fãs de "Pulp Fiction" mas o mais recente filme de Quentin Tarantino "Bastardos Inglórios" é seu melhor filme. Fui assistir por estes dias. Tarantino faz uma fábula do já fiel e conhecido nosso 'filme de guerra'. Porém seu filme é fictício e da melhor ficção viável; não busca como nos comuns filmes deste assuntos um dado verídico e documental e não vemos judeus mortos de fome sendo açoitados em campos de concentração, nem soldados da SS ridicularizando-os.Lembrei-me do já tão criticado "A vida é Bela", também outra excelenete versão do cinema italiano (Roberto Benigni).
Pelo contrário, seu filme fala do tal desejo de vingança que muitos de nós ( e eu posso dizer que sinto isso na pele como uma judia), desejaríamos fazer: acabar com Hitler e seus fiés escudeiros. A obra coloca um bando de americanos caipiras judeus que querem vingar-se da maior quantidade possivel de nazistas executando-os e retirando seus escalpos....claro, tem muito sangue e violência,como todo filme de Tarantino, mas aqui a violência não é gratuita nem esguicha sangue como em "kill Bill" ou "Pulp". Brad Pitt esta ótimo enquanto o líder destes americanos caipiras, que tais como jogadores de baseball matam os nazistas a pancadas ( há aqui uma ridicularização também do americano médio- aquele super -herói comedor de todas as mocinhas dos chamados filmes hollywwodianos do mainstream). Pitt é um soldado idiota, burro até. A ação acaba se centrando na personagem da francesa Shosanna Dreyfuss (Mélanie Laurent), uma judia fugitiva e sobrevivente que também busca vingança. Como em todo filme básico de Tarantino são sempre várias historietas que se desenvolvem simultaneamente e acabam se juntando em determincada hora confluindo num final apocalíptico- , mas o que me agradou é que o grande astro do filme, no caso, Pitt, é um soldado boçal e anti- heróico e o filme se centra em atuações explêndidas de atores pouco conhecidos do público brasileiro p , tais como o coronel Hans Landa (Chrisoph Waltz), excelente ator .
O que agrada é que o filme tem 'punch', a trama é boa, são quase duas horas e meia que passam voando; o enredo ótimo, os atores excelentes. Hitler é ótimamente interpretado também e ridicularizado tendo a cena em que primeiro aparece posando para um artista que faz um mural seu.
Mas o que mais me deliciou foi o fato de a ação principal do filme se desenrolar num cinema , de os alemães serem literalmente lá exterminados; o filme é cheio de citações cinematográficas, um ator que vive ali Emil Jennings (aquele que interpretou o famoso professor alemão que se apaixona pela prostituta Lola vivida por Marlene Dietrich em "Anjo Azul", que se não me engano é de 1919); a atriz/espiã alemã que performa uma não tão distante Mata Hari; e o melhor de tudo é saber que em se tratando de Arte tudo pode ser feito e por ela podemos nos 'vingar' das matanças históricas, purgando-as. Hiteler é morto literalmente no e pelo cinema; e Tarantino faz sua obra máxima,metaliguística, em que nós como espectadores sedentos de vingança somos também encurralados em seu cinema pra ver este ato de 'sacrificio e oferenda". O cinema engole e aniquila os nazistas.
Sua vingança é alegre e libertadora, saimos do cinema nos sentindo leves através das mãos de 'indios -apaches" retirados de um bang -bang folhetinhesco que se passa na Alemanha da Segunda Guerra.É muito bom descobrir que a Grande Arte não precisa apenas nos falar de amores impossíveis, das felicidades alcançáveis da vida mas também da Vingança. A vingança, neste caso,vem pelo cinema, e como alguém ja disse um dia, somente a Arte nos liberta.

Bravo Tarantino!!

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Amor replicante


Recentemente ouvi de uma pessoa que me era querida que ela não estava feliz comigo.
Fico me questionando: quem inventou este conceito cretino de felicidade? Por que atribuimos aos outros nos fazerem felizes??
Bom ando muito descrente do homem de modo geral, digo da humanidade...o egoísmo das pessoas me aniquila.
Você fica meses se relacionando com um indivíduo pra depois ser delatada como "uma mosca que pousou na minha sopa"..isto porque não havia desavenças, grandes dramas. Mas descobre que havia somente ELE, ELE, E MAIS NADA. E que você devia ser aquele adendozinho, aquele orgãozinho pendurado nele, tal como um apêndice que de vez em quando ele fazia um carinho e fingia que te gostava.
As pessoas não sabem mais de dar, se doar aos outros?? Amadureçam pessoas e não me venham com papinhos de telenovelas de quinta categoria a la "vamos dar um tempo". Nossa isso ofende meus neurônios!!!
Sejam machos, usem seus colhões, afinal pra mais alguma coisa que sexo eles devem servir.
As pessoas se relacionam com outras hoje esquecendo-se do principal: que há O OUTRO nesta e em qualquer relação. E ela esta alí não apenas pra lhe proporcionar risos, cumplicidades, gozos e outros prazeres mas porque alguém me disse um dia que sair do umbigo de sí mesmo e descobrir o outro e nele mergulhar é uma das melhores coisas que o ser humano pode fazer com outros com os quais se relaciona.E eu ja vivi isto e sempre vivo e continuo afirmando: o OUTRO é o que há de bom, claro, quando este outro tem camadas e mais camadas a serem descobertas e vividas....
Mas pra que ser relacionar com o outro se não há um interesse pelo outro??
Mais fácil: compre uma boneca inflável ou um replicante : ela não vai te cobrar que você deixou de sair com ela pra ver o futebol do seu time e tomar cerveja com seus amigos(e, aliás nunca foi convidada por se tratar de um programa do clube do Bolinha.....; nao vai querer dormir ao seu lado de conchinha, nao vai ter que aturar sua TPM , nem perceber e reclamar que você não quer conhecer os amigos e a família . Não sei porque as pessoas insistem tanto em buscar pessoas pra se relacionar se no fundo não há relacionamento nem um verdadeiro interesse pelo outro: há apenas um USAR o outro e joga-lo no lixo.
Ninguém é um lixo reciclável pra ser jogado fora.
Acho que já to ficando caquética mesmo e não existem mais homens que pensem assim como eu. Até o sexo oposto ja tentei mas devo confessar que homem ainda é o que há de bom nesta vida. Talvez eu mude, mas acho difícil, talvez deva usar os homens como puro prazer de meu hedonismo, ah, vários ao mesmo tempo, sem querer me comprometer com algo ou alguém.....viva o desapego? Será??
Muito recentemente também creio que uma luz apareceu no fim do túnel e estou tentando segui-la
espero que não seja apenas um vagalume pululantee eu me estabaque na parede novamente ... do contrário vou alí encomendar meu replicante na versão Blade Runner do Harrison Ford. Alguém mais quer?? Pois comprando no atacado deve sair mais barato..........

terça-feira, 14 de julho de 2009

Marguerite Duras


Nesta noite, li, numa tacada só o delicioso livro "O Homem sentado no corredor/ A doença da Morte" da escritora, que adoro, Marguerite Duras. Já havia lido o excelente "O Amante" que foi adaptado para o cinema em 1991, por Jean Annaud(fantástica adaptação, aliás), e "A Dor". Duras é sempre profunda, vai fundo na dor, suas mulheres- muitas vezes ela mesma é a protagonista de suas histórias-, sofrem, amam, tudo parece carnal, deixa memórias, cicatrizes no corpo e não só na mente. Vale aqui lembrar que ela roterizou um dos filmes que mais amo "Hiroshima Mon Amour", de Alan Resnais. Suas mulheres perpassam a Segunda Guerra, a do Ópio,etc e a história da humanidade é assim vivida por estas concomitantemente às suas histórias de amor, sexo, paixão. Ontem dormi feliz. Duras como ninguem, as duas pequenas novelas retrata a natureza profunda das relações amorosas, a paixão, o amor, Eros e Tanatos, o Amor-ódio e vai mais fundo:o erotismo, o tesão, o gozo. Sua escritura é moderna como a de ninguém. Vão aqui pequenos e maravilhosos trechos: "Através da finura da pele que a recobre estende-se a trama escura do sangue.....Bem depressa você desiste, você já não a procura,nem na cidade, nem na noite, nem no dia. Assim, no entanto, você pode viver este amor do único jeito que lhe é possível, perdendo-o antes que ele acontecesse.....Sempre acho que nada substitui a leitura de um texto, que nada substitui falta de memória do texto, nada, nenhuma ação". Boa leitura!

terça-feira, 30 de junho de 2009

Morte e Memória




Terminei de ler "Os prazeres e os dias", primeiro livro do então jovem Marcel Proust, que a época tinha 25 anos. O livro é de uma riqueza imensa, fico chocada em apreciar como um jovem tinha naquela época tamanha consiência do que era a vida, as relações afetivas e já o leitmotif daquilo que seria o ápice de sua famosa e grande obra "Em busca do tempo perdido" - a memória.
Comecei a ler este livro não por acaso, encontro-me 'emperrada' na leitura do segundo volume da famosa obra do mesmo autor, "Em Busca do Tempo perdido", ou melhor no segundo volume da série de sete deste, "À Sombra das Raparigas em Flor". A mim me parece que a tecitura da escrita de Proust era mais fluída em sua obra inaugural. "Em busca do Tempo", contém mais de 3.000 páginas e tem uma narrativa mais arrastada, o tempo parece distender-se e arrastar-se mais demoradamente; são páginas e páginas detalhadas e com cuidadosas descrições minuciosas...talvez eu esteja num momento mais fluído de minha vida, buscando leituras mais 'corridas'.
Neste mês sofri uma perda muito grande, meu pai faleceu. Foi de repente, sem doenças e causas maiores que pudessem construir um entorno mais confortável para não ter nos pego tão de surpesa.
Mas ao mesmo tempo me pergunto: quando a morte pode ser mais suave, mais delicada? A morte é sempre uma perda, um sumir,evaporar, ir-se e, nós humanos não sabemos lidar com ela. Proust também fala que "a morte vem em auxiíio dos destinos que tem dificuldade para cumprir-se"; no caso do meu pai e do momento de vida que ele vivia, esta frase faz muito sentido. Mas apesar de dar sentido, nós nunca entendemos e aceitamos....ele einda era jovem, como assim?? Talvez esta seja a questão da vida e de seu livro, buscamos na vida e em seus dias, os prazeres, a fruição deste e não lidar com a cara na parede da dor. Por isso que estamos vivos e somos humanos.....a vida é este calendário de prazeres, mas que agora, para mim, se intercala por dias de choro, e recordações.E creio que talvez tenha que ser assim, afinal acontece para e com todo mundo.
Faço aqui esta conexão com Proust justamente pelo fato da MEMÓRIA. Creio que nada na vida é por acaso, como já dizia nosso amigo Jung, a vida é feita de sincronicidades....comecei a ler este livro pouco antes da morte de meu pai, e creio que terminei este buscando explicações, causar e porquês.....nós sempre estamos buscando nas coisas explicações para os fatos que as abraçam, antecedem ou ocorrem conjuntamente, o ser humano, ou melhor nós, somos assim, buscamos explicações, mesmo para o inefável e inexplicável.

Mas afinal sem poesias ou arabescos, posso dizer que a Morte é mesmo uma merda!
Eu buscava nas palavras escritas conforto para ações não compreendidas, da vida que nos toma uma pessoa, nos deixando, no meu caso, sem uma ascedência. Impressionante como a perda de uma pessoa querida nos torna mais atentos, fiquei pensando em agilizar check-ups, comecei a policiar os cigarros fumados pela minha mãe, observava mais atentamente as pessoas queridas ao meu redor, amigos, namorado, mãe, família.....engraçado, nos tornamos mais zelosos e percebi que devemos nos demorar mais no estar e fazer das coisas.....afinal pra que a pressa e a ansiedade?? Viver e estar em cada ação, seja ela boa ou má, da um sentido e significados à estas e, claro no futuro constroem aquilo pelo qual voltaremos a estas: a MEMÓRIA. O grito, o ser e a essência das coisas que nos ocorrem são elas.
Meu pai foi tudo aquilo que fez, que não fez, tudo o que potencialmente fez-se. E é isto que fica dele, boas memórias, algumas fotos da infância e da juventude e de um presente recente vistas e guardadas numa pasta de elástico e boas, muito boas lembranças. Como diz Prost ficam agora "tributos melancólicos de nosso delirio". Não nos preocupamos mais com a presença da pessoa e como o próprio autor diz a "ausência começa a ter uma corporeidade incrivel, tornando-se uma presença viva e pulsante". "A morte embeleza aquele que abate" é verdade, perdoamos os erros e besteiras feitas em vida e a pessoa vira uma espécie de mártir. É isto, a morte engrandece,a pessoa torna-se um totém, um ícone, uma imagem engastada na memória, e vivemos pela lembrança de suas ações. "A distância embeleza e engrandece, banha o ser ausente numa aura de embelezamento".
Como diz Proust "a ausência é a mais viva, a mais eficaz, a mais indestrutível, a mais fiel presença".
Será mesmo que como disse Shakespeare " a vida seja uma história contada por um idiota, cheia de som e furia, sem significado algum"?
Prefiro acreditar que não, a minha tem som, fúria, lágrimas, sorrisos . O tal Significado é muito raso e para aqueles que buscam finaizinhos felizes. Prefiro me agarrar aos acontecimentos, às "aconteçenças" da vida, alegrias e tristezas, algum siginificado, muita dúvida, e claro, muito memória!
Você ainda esta em mim, agora em outro plano
A memória é sua mais fiel amiga
Saudades

domingo, 28 de junho de 2009

Não acredito num deus que não saiba dançar

Publico abaixo, um texto que concebi mês passado e, que faz parte da mostra da Artista Plástica Kika Nicolela em Londres: "SELECTED VIDEOS AND PHOTOS, June 12 – July 08 2009, at the 16mm, London, UK."

Para quem se interessar pelo trabalho da artista e quiser conhecer mais especificamente os vídeos que cito, basta acessar o site da artista: http://www.dilemastudio.com/

O texto também pode ser lido no site na versão em inglês.

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EU NÃO ACREDITO NUM DEUS QUE NÃO SAIBA DANÇAR, Nietzsche

Kika Nicolela é uma artista “plástica-cineasta”. Sua formação é em Cinema, mas seus filmes são sempre expostos no circuito artístico Seus vídeos expostos nesta mostra, tanto do Primeiro quanto do Segundo Programa articulam entre as fronteiras do pictórico e do corpóreo. Em “Passenger”,a mão que segura a câmera e tudo filma é guiada por um olhar desconstrutivo, deformador, desestetizador do olhar claro, do olhar formalista do “bom gosto”; a chuva e a luz incorpóreas são a semântica que rege este borrar de manchas e líquidos. Não temos como não nos lembrar dos artistas Impressionistas. Kika nos faz mergulhar num lago de Ninféas.

Já em “Naked”, o corpo nu dialoga com o concreto corpóreo e rígido da cidade. A pele feita de cimento, o asfalto feito de carne, tudo se interpenetra e nos inebria. O público torna-se privado e o privado público. Nossa experiência como espectadores é regida primordialmente pela sensorialidade, nossos sentidos acordam; buscamos cheiros, e nosso olhar quer raspar o tênue limite da espessura entre o filmado e o sentido

Em “Poema do Êxtase” a referência ao cineasta Bergman é óbvia, vemos Liv Ulmann, jovem e a atual, a questão primordial aqui é o tempo, o tempo congelado, estagnado.

Kika sempre dialoga entre os tênues limites do corpo, do ser e sua alteridade, o alcance de sua identidade no estar e relacionar-se com a natureza, os bichos, os efeitos atmosféricos .

Sua paleta busca sempre este corpo, substantivo e que sempre esta em busca de algo.

“Flux” volta a estas mesmas questões, e o ‘filtro’ avermelhado do vídeo anterior encontra-se aqui também entre nosso olhar e a superfície de Liv ou aqui entre a mulher que dança e flana e o cavalo e a natureza. Muitas referências me vêem a cabeça, o vermelhos de Caravaggio, o modo de filmar de Peter Greenaway, o barroquismo sempre presente: nos gestos do corpo, nas luzes, nos líquidos, etc

“Windmaker” novamente coloca a questão da mulher e a busca de si mesma em meio à natureza, ao vento, a água. O vídeo é um verdadeiro poema azulado, feito de manchas tênues, densas e aquosas. Isso que me seduz na obra de Kika, tudo é sempre um pretexto para a artista alcançar questões pictóricas, que ela revela no ato da edição,seu olhar-pincelada que tudo borra, desloca, deforma, disforma e contorna.

O vento nos pincela também.

Já em “Trópico de Capricórnio”, presente no segundo programa da mostra questões sociais dialogam agora com este corpo-produto. A questão aqui é o corpo como produto e suas metamorfoses.

Seus vídeos nos fazem pensar a respeito do lugar que ocupamos no mundo; que sentido buscamos? Através de corpos que se questionam, que andam que dançam que flanam há uma cabeça que não quer diluir-se, mas que busca neste fluir através dos vídeos um sentido final, que, como já disse Niezstche, dança na superfície terrestre.

Seus vídeos têm tecitura, são feitos como tecidos que pedem para ser tocados; tem textura, relevo, densidade; parecem feitos de pontos-cruz ou bordados. Não apenas o conteúdo que revelam é rico de significados e camadas a serem descobertas como também a estética tal como uma pincelada que são. Podemos perceber uma mesma impressão digital que abarca a todos: o corpo, seus versos, reversos e entrenós, seu relacionar-se com o entorno urbano e orgânico.

Dançar e questionar-se é estar e ser neste mundo que habitamos e nos habita.

Não acredito num Deus e também num homem que não saibam dançar

Daniella Samad

Maio 2009

terça-feira, 31 de março de 2009

Hay que endurecer, pero sin perder la ternura, jámas






O filme"Che" de Steven Soderbergh me emocionou. Che, o argentino revolucionário, é retratado fielmente na pele do excelente Benício del Toro. Um dos fatores que muito salva o filme é este ser falado no espanhol e não num inglês "blockbusteriano" que a tudo e todos domina.Portanto o filme pretende-se a um realismo que consegue atingir.
Lembrei-me o tempo todo do filme de Walter Salles, o também excelente "Diários de Motocicleta",de 2004, uma espécie de road movie, que retratava o então jovem Che e suas experiências com aquilo que veio a formatá-lo enquanto o revolucionário intelectual e guerrilheiro que foi dos anos 60. O filme tratava de um Che ainda em formação, e de seu fiel amigo Alberto Granado;há um livro deste "Con el Che por America", contando a aventura desses então dois colegas universitários na travessia do continente sul-americano numa velha motocicleta Norton 500 cc, fabricada em 1939 e apelidada de La Poderosa II , numa viagem que se estendeu de Buenos Aires e Caracas.
Bom, a vida de Che sempre me fascinou, inicialmente por meu pai ser argentino e eu me recordar de minha infância sempre rodeada de livros de Che espalhados pelos sofás e estantes de casa. Meu pai sempre lia sobre aquele que foi seu ícone de adolescência e formação Antí-Peronista, dentre outros livros que iam desde temas como a Guerra da Nicarágua, as Malvinas, e a Segunda Guerra Mundial. Papai sempre foi politizado e até hoje perde-se em suas conversas que mais parecem discuros sobre palanques......
Bom, depois eu acabei tendo uma formação dita à época, de esquerda, estudei no colégio Equipe, que havia sido berço de muitos importantes formadores de opinião, quando, era, nos anos 70 um cursinho fomentador destes cérebros, por lá passaram os Titãs, Sérgio Groismann e outras figuras propositoras que sempre arriavam a bandeira de discuros e debates.
O filme de Walter Salles me fascinou, primeiro pela temática da formação da personalidade deste jovem revolucionário e também por descrever esta em forma de Road Movie, que não sei muito bem porque sempre me fascina; e ainda mais tratando-se sobre duas rodas. Este filme e "Easy Ryder" tem um 'je ne se qua' que me pegam, tavez pelo meu estilo "libertário" de boas idéias na cabeça e aquele bom e velho chavão de colocar o pé na estrada e sentir o vento batendo na cara, sensação que verdadeiramente só pode ser experienciada quando em cima de uma motocicleta (eu tenho uma scooter e posso dizer que esta experiência é mesmo deliciosa).
Não estou querendo afirmar aqui que me tornei uma comunista, claro, sei o lugar de burguesa que ocupo na sociedade...
Bom, neste filme de Sodenbergh (ele tem uma segunda parte que em breve deverá estrear nos cinemas brasileiros); temos um Che que já é pai, que já deixou sua familia e terra e embrenha-se na selva da América Latina arrematando soldados para aquilo que viria a ser a Revolução Comunista que culminou com o que hoje chamamos Cuba.
Temos na tela um Che ainda médico, que quando pode vê-se perdidos em suas leituras de Tolstói e outros grandes clássicos; ou em afogados e angustiantes ataques de asma. Muito engraçado ver o guerrilheiros que este foi, de arma empunhada no meio da selva enquanto no meio de fortes crises de asma....
Temos um Che formando,organizando e liderando o Movimento Guerrilheiro 26 de Julho, M26, o contato com Fidel e Rául Castro e sua escolha no abandono da carreira médica para a carreira de guerrilheiro de arma em punho.
Vemos um Che que queria soldados alfabetizados, pois ele já sabia que uma revolução nao é feita apenas com armas, mas com um povo inteligente e portanto incapaz de ser dominado e feito de bobo.
Provavelmente a segunda parte do filme irá nos mostrar o Che maduro após a rRvolução , espraiando os preceitos comunistas pela America Latina até seu assassinato na Bolivia, em 1967.
Eu fiquei surpresa em perceber que Che foi um dos fomentadores da idéia e certeza de que toda e qualquer mudança só pode ser feita na sociedade com a inteligência e a doação e indentificação com nossos iguais. Estas ainda são nossas verdadeiras armas.Alias, creio que são armas atemporais...
A foto de Korda que já faz parte de nosso inconsciente coletivo ainda é moderna; pois ainda invoca que a solução para o imperialismo autofágico que vivemos neste momento, ainda é a consciência do lugar que ocupamos na sociedade e erradicação da fome, das desigualdades socias e do analfabetismo. Claro que o discurso comunista não cabe mais hoje em nossa sociedade, mas alguns preceitos lançados por este sim.
Somente e, ainda apenas com um povo letrado e ciente do contexto em que se encontra podera haver mudanças. Nossa arma ainda são a nossa capacidade da conversa e do discurso
Como numa cena do filme, fica claro que Che nao estava atrás de luxo e ascensão social, pela obtenção de objetos de luxo , mas apenas pelos ideais de sua Revolução e o estabelecimento de ideais democraáicos. Ele não queria o poder, ao contrário de Fidel (talvez seja está a falácia do seu governo em que Cuba se encontra hoje...), ele queria a Revolução, a democracia e um povo digno. Como ele mesmo disse: "Prefiro morrer de pé do que viver sempre ajoelhado."
Creio que poder escrever em pleno século XXI num blog e poder ser acessada e colocar meus discurso na rede é hoje, uma arma na democratização de nosso saber e na troca deste com outros seres humanos nesta luta por uma sociedade cada vez melhor para todos nós seres humanos.

Portanto companheiros, arriba com lá revolucion!!

sábado, 14 de fevereiro de 2009

O Mágico de Oz



Ontem zapeando minha tevê dei de cara com o fantástico "O Mágico de Oz". O filme é de 1939 e parece tão atual.É a velha história de Doroty, interpretada pela prodígio Judy Garland, uma menina de 11 anos que vive com seus tios no Kansas e por uma acidente desdes muito típicos nos dias de hoje, uma tormenta com tufões, ela e seu caozinho vão parar na Cidade das Esmeraldas, matando a bruxa Má do Leste.
Nisso surge uma centena de personagens destas boas histórias infanto-juvenis, gnomos, a fada boa, os sapatinhos de rubis, que ela nunca podera tirar dos pés; terá que seguir pela estrada de pedras amarelas e lá encontrar o tal mágico que ira possibilitar seu retorno à casa e sua família. Pelo caminho Doroty encontra três fiéis escudeiros, o homem de lata que necessita de um Coração, já que seu peito é oco, feito de lata e vazio; o espantalho, que busca um Cérebro e o leão que de rei da selva na tem nada, esta em busca de Coragem.
Bom, daí o trio junto e o fiel Totó enfrentarão a irma da bruxa má do Leste, a do Oeste e seus comparsas até chegarem à Oz. A boa e velha batlaha do herói será traçada e vencida por eles.
O filme é fantástico, o momento que Garland canta na sua fazenda a famosa "Somewhere over the Rainbow" imortalizou-a , assim como o filme. Ela tinha apenas 16 anos na época. O filme é repleto de ótimos "efeitos especiais" ...lembrem-se que era apenas 1939,não existiam rídiculos Hans Donners ou os bons Spielbergs.
O filme é todo filmado em cenário, dá para perceber as flores de plásticoe diversos outros truques moderníssimos à época, mas os 3 atores que representam o leão, o espantalho e o homem de lata tem uma excelente expressão corporal. Todos cantavam, dançavam e interpretavam...creio que hoje não temos mais deste calibre de atores. Apenas bundas e peito chacoalhando em busca de fama.
O que se buscava era coragem, sentimento e pensameto, lemas que hoje todos jogam na lata de lixo.
As pessoas escondem-se por trás de atitudes covardes, usam-se umas as outras e o coração vai para o pé e a racionalidade deu lugar ao desespero satisfeito por tarjas pretas.

Pois é, em algum lugar para além do arco-iris o céu é azul
Com certeza não é aqui.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Feliz Hiato Novo


Ano novo. tudo recomeça....não sei porque mas sempre fico nostálgica e borocochô nesta época do ano. Deve ser a conjunção (astral??) de diversos fatores: meu aniversário que é quase natalino, o natal, o ano novo e este hiato que fica entre as coisas acabadas, ou mal findas do ano, agora já dito passado, para o ano presente. Parece que há no ar uma obrigação de comemorar, de 'ter' que ser feliz, te termos que ansiar por boas cousas vindas, a chamada Esperança, palavra que não gosto muito. Esperar, para uma alma ansiosa é por demais corrosivo. Aíííí, mas que preguiça deste "TER". Prefiro fazer. Mas em épocas de lesera total em que tento retomar o ritmo tão bom de trabalho e otras cositas más que vinham na rebarba do ano findo, melhor ficar quieta na minha. Me dedico aos alunos que aos poucos voltam, e às boas leituras, graças a deus os bons livros sempre me acompanham. Colo abaixo um pequeno e nada prolixo texto publicado hoje no site de José Saramago; identifiquei-me porque "as palavras ditas muito mais que findas, estas ficarão".
Feliz dois mil e nove novo! Axé macacada!
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Balanço

Janeiro 5, 2009 by José Saramago

Valeu a pena? Valeram a pena estes comentários, estas opiniões, estas críticas? Ficou o mundo melhor que antes? E eu, como fiquei? Isso esperava? Satisfeito com o trabalho? Responder “sim” a todas estas perguntas, ou a mesmo só a alguma delas, seria a demonstração clara de uma cegueira mental sem desculpa. E responder com um “não” sem excepções, que poderia ser? Excesso de modéstia? De resignação? Ou apenas a consciência de que qualquer obra humana não passa de uma pálida sombra da obra antes sonhada. Conta-se que Miguel Ângelo, quando terminou o Moisés que se encontra em Roma, na igreja de San Pietro in Vincoli, deu uma martelada no joelho da estátua e gritou: “Fala!” Não será preciso dizer que Moisés não falou. Moisés nunca fala. Também o que neste lugar se escreveu ao longo dos últimos meses não contém mais palavras nem mais eloquentes que as que puderam ser escritas, precisamente essas a quem o autor gostaria de pedir, apenas murmurando, “Falem, por favor, digam-me o que são, para que serviram, se para algo foi”. Calam, não respondem. Que fazer, então? Interrogar as palavras é o destino de quem escreve. Um artigo? Uma crónica? Um livro? Pois seja, já sabemos que Moisés não responderá.