terça-feira, 30 de junho de 2009

Morte e Memória




Terminei de ler "Os prazeres e os dias", primeiro livro do então jovem Marcel Proust, que a época tinha 25 anos. O livro é de uma riqueza imensa, fico chocada em apreciar como um jovem tinha naquela época tamanha consiência do que era a vida, as relações afetivas e já o leitmotif daquilo que seria o ápice de sua famosa e grande obra "Em busca do tempo perdido" - a memória.
Comecei a ler este livro não por acaso, encontro-me 'emperrada' na leitura do segundo volume da famosa obra do mesmo autor, "Em Busca do Tempo perdido", ou melhor no segundo volume da série de sete deste, "À Sombra das Raparigas em Flor". A mim me parece que a tecitura da escrita de Proust era mais fluída em sua obra inaugural. "Em busca do Tempo", contém mais de 3.000 páginas e tem uma narrativa mais arrastada, o tempo parece distender-se e arrastar-se mais demoradamente; são páginas e páginas detalhadas e com cuidadosas descrições minuciosas...talvez eu esteja num momento mais fluído de minha vida, buscando leituras mais 'corridas'.
Neste mês sofri uma perda muito grande, meu pai faleceu. Foi de repente, sem doenças e causas maiores que pudessem construir um entorno mais confortável para não ter nos pego tão de surpesa.
Mas ao mesmo tempo me pergunto: quando a morte pode ser mais suave, mais delicada? A morte é sempre uma perda, um sumir,evaporar, ir-se e, nós humanos não sabemos lidar com ela. Proust também fala que "a morte vem em auxiíio dos destinos que tem dificuldade para cumprir-se"; no caso do meu pai e do momento de vida que ele vivia, esta frase faz muito sentido. Mas apesar de dar sentido, nós nunca entendemos e aceitamos....ele einda era jovem, como assim?? Talvez esta seja a questão da vida e de seu livro, buscamos na vida e em seus dias, os prazeres, a fruição deste e não lidar com a cara na parede da dor. Por isso que estamos vivos e somos humanos.....a vida é este calendário de prazeres, mas que agora, para mim, se intercala por dias de choro, e recordações.E creio que talvez tenha que ser assim, afinal acontece para e com todo mundo.
Faço aqui esta conexão com Proust justamente pelo fato da MEMÓRIA. Creio que nada na vida é por acaso, como já dizia nosso amigo Jung, a vida é feita de sincronicidades....comecei a ler este livro pouco antes da morte de meu pai, e creio que terminei este buscando explicações, causar e porquês.....nós sempre estamos buscando nas coisas explicações para os fatos que as abraçam, antecedem ou ocorrem conjuntamente, o ser humano, ou melhor nós, somos assim, buscamos explicações, mesmo para o inefável e inexplicável.

Mas afinal sem poesias ou arabescos, posso dizer que a Morte é mesmo uma merda!
Eu buscava nas palavras escritas conforto para ações não compreendidas, da vida que nos toma uma pessoa, nos deixando, no meu caso, sem uma ascedência. Impressionante como a perda de uma pessoa querida nos torna mais atentos, fiquei pensando em agilizar check-ups, comecei a policiar os cigarros fumados pela minha mãe, observava mais atentamente as pessoas queridas ao meu redor, amigos, namorado, mãe, família.....engraçado, nos tornamos mais zelosos e percebi que devemos nos demorar mais no estar e fazer das coisas.....afinal pra que a pressa e a ansiedade?? Viver e estar em cada ação, seja ela boa ou má, da um sentido e significados à estas e, claro no futuro constroem aquilo pelo qual voltaremos a estas: a MEMÓRIA. O grito, o ser e a essência das coisas que nos ocorrem são elas.
Meu pai foi tudo aquilo que fez, que não fez, tudo o que potencialmente fez-se. E é isto que fica dele, boas memórias, algumas fotos da infância e da juventude e de um presente recente vistas e guardadas numa pasta de elástico e boas, muito boas lembranças. Como diz Prost ficam agora "tributos melancólicos de nosso delirio". Não nos preocupamos mais com a presença da pessoa e como o próprio autor diz a "ausência começa a ter uma corporeidade incrivel, tornando-se uma presença viva e pulsante". "A morte embeleza aquele que abate" é verdade, perdoamos os erros e besteiras feitas em vida e a pessoa vira uma espécie de mártir. É isto, a morte engrandece,a pessoa torna-se um totém, um ícone, uma imagem engastada na memória, e vivemos pela lembrança de suas ações. "A distância embeleza e engrandece, banha o ser ausente numa aura de embelezamento".
Como diz Proust "a ausência é a mais viva, a mais eficaz, a mais indestrutível, a mais fiel presença".
Será mesmo que como disse Shakespeare " a vida seja uma história contada por um idiota, cheia de som e furia, sem significado algum"?
Prefiro acreditar que não, a minha tem som, fúria, lágrimas, sorrisos . O tal Significado é muito raso e para aqueles que buscam finaizinhos felizes. Prefiro me agarrar aos acontecimentos, às "aconteçenças" da vida, alegrias e tristezas, algum siginificado, muita dúvida, e claro, muito memória!
Você ainda esta em mim, agora em outro plano
A memória é sua mais fiel amiga
Saudades

domingo, 28 de junho de 2009

Não acredito num deus que não saiba dançar

Publico abaixo, um texto que concebi mês passado e, que faz parte da mostra da Artista Plástica Kika Nicolela em Londres: "SELECTED VIDEOS AND PHOTOS, June 12 – July 08 2009, at the 16mm, London, UK."

Para quem se interessar pelo trabalho da artista e quiser conhecer mais especificamente os vídeos que cito, basta acessar o site da artista: http://www.dilemastudio.com/

O texto também pode ser lido no site na versão em inglês.

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EU NÃO ACREDITO NUM DEUS QUE NÃO SAIBA DANÇAR, Nietzsche

Kika Nicolela é uma artista “plástica-cineasta”. Sua formação é em Cinema, mas seus filmes são sempre expostos no circuito artístico Seus vídeos expostos nesta mostra, tanto do Primeiro quanto do Segundo Programa articulam entre as fronteiras do pictórico e do corpóreo. Em “Passenger”,a mão que segura a câmera e tudo filma é guiada por um olhar desconstrutivo, deformador, desestetizador do olhar claro, do olhar formalista do “bom gosto”; a chuva e a luz incorpóreas são a semântica que rege este borrar de manchas e líquidos. Não temos como não nos lembrar dos artistas Impressionistas. Kika nos faz mergulhar num lago de Ninféas.

Já em “Naked”, o corpo nu dialoga com o concreto corpóreo e rígido da cidade. A pele feita de cimento, o asfalto feito de carne, tudo se interpenetra e nos inebria. O público torna-se privado e o privado público. Nossa experiência como espectadores é regida primordialmente pela sensorialidade, nossos sentidos acordam; buscamos cheiros, e nosso olhar quer raspar o tênue limite da espessura entre o filmado e o sentido

Em “Poema do Êxtase” a referência ao cineasta Bergman é óbvia, vemos Liv Ulmann, jovem e a atual, a questão primordial aqui é o tempo, o tempo congelado, estagnado.

Kika sempre dialoga entre os tênues limites do corpo, do ser e sua alteridade, o alcance de sua identidade no estar e relacionar-se com a natureza, os bichos, os efeitos atmosféricos .

Sua paleta busca sempre este corpo, substantivo e que sempre esta em busca de algo.

“Flux” volta a estas mesmas questões, e o ‘filtro’ avermelhado do vídeo anterior encontra-se aqui também entre nosso olhar e a superfície de Liv ou aqui entre a mulher que dança e flana e o cavalo e a natureza. Muitas referências me vêem a cabeça, o vermelhos de Caravaggio, o modo de filmar de Peter Greenaway, o barroquismo sempre presente: nos gestos do corpo, nas luzes, nos líquidos, etc

“Windmaker” novamente coloca a questão da mulher e a busca de si mesma em meio à natureza, ao vento, a água. O vídeo é um verdadeiro poema azulado, feito de manchas tênues, densas e aquosas. Isso que me seduz na obra de Kika, tudo é sempre um pretexto para a artista alcançar questões pictóricas, que ela revela no ato da edição,seu olhar-pincelada que tudo borra, desloca, deforma, disforma e contorna.

O vento nos pincela também.

Já em “Trópico de Capricórnio”, presente no segundo programa da mostra questões sociais dialogam agora com este corpo-produto. A questão aqui é o corpo como produto e suas metamorfoses.

Seus vídeos nos fazem pensar a respeito do lugar que ocupamos no mundo; que sentido buscamos? Através de corpos que se questionam, que andam que dançam que flanam há uma cabeça que não quer diluir-se, mas que busca neste fluir através dos vídeos um sentido final, que, como já disse Niezstche, dança na superfície terrestre.

Seus vídeos têm tecitura, são feitos como tecidos que pedem para ser tocados; tem textura, relevo, densidade; parecem feitos de pontos-cruz ou bordados. Não apenas o conteúdo que revelam é rico de significados e camadas a serem descobertas como também a estética tal como uma pincelada que são. Podemos perceber uma mesma impressão digital que abarca a todos: o corpo, seus versos, reversos e entrenós, seu relacionar-se com o entorno urbano e orgânico.

Dançar e questionar-se é estar e ser neste mundo que habitamos e nos habita.

Não acredito num Deus e também num homem que não saibam dançar

Daniella Samad

Maio 2009